Foi rodando pelas curvas das estradas que dão acesso ao pequeno município de São Francisco Xavier, na serra da Mantiqueira (SP), que fomos assaltados por aquele sonho bucólico de viver na serra. Lá onde o céu ainda é azul e a fumaça pouca, onde as estrelas podem ser vistas e o ar é rarefeito. Há casinhas que parecem saídas dos contos de fada dos irmãos Grimm. São riachos, árvores e pequenas propriedades repletas de verde, imponência da fauna e da flora, como desenhos intocados feitos por Deus.
Já próximos, especulamos quem viveria ali. A senhorinha simpática que possui dotes mágicos culinários, com cachorros saltitantes e gatos desconfiados em seu jardim, adornado de flores e uma pequena plantação. De repente, vemos que ela se transforma numa bruxa bolsominion: xô comunistas, vocês não são bem-vindos! Aqui é Deus, pátria e família! Surpresos e em fuga, descobrimos que no topo da casa há uma bandeira do Brasil verde-amarela. O que era romance se transforma em um filme de Stephen King e rimos daquela cena imaginária, mas possivelmente real.
Cadê o ar
Já em Sampa, andando por suas ruas, com zero de umidade relativa e ar irrespirável, encontro dificuldades para concluir meu passeio a pé e me vejo obrigado a parar em um boteco. Peço uma água gelada para acalmar a tosse alérgica e a boca seca e, por coincidência, encontro uma conhecida de outros tempos. Estendemos nossa conversa por uma hora, esquecendo dos compromissos, numa agradável surpresa que flui ao sabor das horas. Rimos do passado e desconfiamos do futuro. Esquecemos daquele deserto que a cidade se transformara, embalados pela conexão de nossas vidas dedicadas ao magistério.
Já na Consolação, passo em frente a um cinema e vejo Sidonie no Japão em cartaz, o novo filme de Isabelle Hupert. Olho para o relógio do celular, titubeio e finalmente decido entrar. Sou capturado pela tela, sequestrado pelo enredo e pela personagem que essa atriz interpreta, tendo como cenário as lindas paisagens japonesas. Uma história de novas possibilidades em que a escrita e o luto são temas recorrentes. Esqueço da vida lá fora enquanto o cinema me hipnotiza por dentro, no outro lado do mundo.
No interior da vida
São Francisco Xavier e São Paulo - capital. Cada uma com suas belezas e contradições. Interior é provinciano, mas tem os silêncios e natureza essenciais à continuidade enquanto espécie. No entanto, por vezes, as mentes enraizadas são implacáveis com as diferenças e o outro passa a ser uma ameaça.
A cidade, com tantas carências, ainda tem um restinho de humanidade, acolhe na conversa, no abraço, sem julgar, com sessões de cinema que garantem o nosso sonho. Com tanta gente disputando o espaço geográfico, você se dá conta da sua insignificância e que é mais um somente. Há tanta liberdade para se ser, sem ter alguém julgando ou dizendo como você deve viver.
Juliana Rojas
O novo filme nacional da cineasta Juliana Rojas “Cidade; campo” mostra as contradições de quem habita esses dois espaços. Com duas horas de duração, a película conta duas histórias que se entrelaçam.
Na primeira, vemos Joana (Fernanda Viana em atuação impecável), uma mineira que é obrigada a mudar-se de Brumadinho por conta do acidente ambiental. Ela vem a São Paulo em busca de uma nova chance, pois perdeu seu roçado para a lama. Sem reembolso e nenhum reparo financeiro, chega na casa da irmã e do sobrinho, passando a trabalhar como doméstica.
Nas horas vagas, cuida de uma hortinha e fuma seu cachimbo, lembrando da vida tranquila do interior. Com algum esforço, consegue encontrar um novo sentido existencial. Apesar da exploração do trabalho como autônoma, faz novas amizades e esquece a tragédia vivida. Com um bocadim de esperança e humor.
No caminho inverso, o casal Mara (Bruna Linzmeyer) e Flávia (Mirella Façanha) vão em busca da paz no campo, numa pequena propriedade, cuja vizinhança é dominada pelo agronegócio. Aos poucos e sinistramente nada dá certo para elas, porém uma descoberta sobre os estudos do pai de Flávia justificará o clima de destruição que ronda o lugar.
A ancestralidade trará lucidez para o casal compreender os acontecimentos. É um filme que mostra o céu desabando sobre nós, como afirma o mestre Davi Kopenawa e a sabedoria dos Yanomamis. Enquanto o antropoceno insistir em sua arrogância e prepotência de ambição desmedida, as consequências serão trágicas para todos, sem exceção.
“Cidade; campo” recebeu o prêmio de melhor filme do júri, da crítica e melhor atriz (Fernanda Viana) no último festival de Gramado. Merece ser visto e discutido, pois dialoga com a nossa realidade sob vários aspectos.
Olá! Escrevo crônicas sobre vida contemplativa, livros, filmes e novas configurações cotidianas em um percurso diferente nesses tempos de correria e exaustão. Sou um sobrevivente do burnout. Comente e assine minha newsletter, sem custos.
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boa prosa - e isso importa - a prosa clara abre a possibilidade de encontrar significadosna vida vivida - a de todos os dia - obrigado Samuel