Após o trauma do nascimento, somos jogados no mundo para buscar, ação que impulsiona o nosso desejo e a nossa sobrevivência. Cortamos o cordão umbilical e no colo da mãe vamos sendo nutridos, nos desenvolvendo para uma autonomia que nunca é completa. Colecionamos rupturas em que o seio materno vai sendo substituído por outros objetos de transição e seguimos assim nas diferentes fases de nosso desenvolvimento, acompanhados de vazios, completudes breves, novas buscas e abandonos. Mas o que ocorre quando a pessoa desiste de si?
Em várias fases da vida desistimos de projetos e vamos nos ancorando a outros. Isso inclui pessoas e sonhos. Mas há momentos que desistimos de tudo, numa espécie de depressão existencial. Penso nas histórias envolvendo o consumo de drogas, dos moradores em situação de rua que negam auxílio, dos adictos de toda a ordem. Renunciaram a si e estão sempre na linha tênue entre a pulsão de vida e de morte.
A depressão não tratada pode conduzir ao abandono completo. A cracolândia, nas cidades, é o retrato cruel da compulsão pelo vício, num lugar difícil de sair, onde resistir ao apelo da droga é quase impossível. São muitas histórias de abandono familiar que circulam por ali e atingem homens, mulheres, pessoas trans, jovens de todas as classes. Elas e eles desistiram e agora acordam a própria sorte. As pessoas os olham com medo, talvez de reencontrarem também algum abandono lá no inconsciente.
João Au-au
Na minha rua existe uma pessoa em situação de abandono a quem vou chamar de João porque ninguém sabe o certo seu nome. Alguns o chamam de “Au-au” porque ele imita o som dos cães na esperança de ser adotado por alguém. Quando encontra com qualquer pessoa, João se aproxima e grita “meu pai!” ou “minha mãe!” na tentativa do abraço. Quando rechaçado, se recolhe novamente ao silêncio, olhando para baixo ou para o nada. Sua consciência de tempo e espaço parece irregular. Desperta a compaixão de alguns transeuntes e a repulsa de outros. Na indiferença da metrópole, é mais um, por vezes explorado como atração do bizarro, não bastasse sua condição social precária.
Como João, seguimos a vida também imitando algo, alguém ou criando, na esperança de sermos acolhidos de nossos abandonos primários. São feridas que não cicatrizaram e por vezes voltam a abrir. Há madrugadas que escuto um “au-au” perdido no silêncio da noite. Seria impressão, sonho ou João tentando encontrar alguém?
A senhora da van
Um dos textos mais comoventes e engraçados sobre o abandono está na obra escrita pelo inglês Alan Bennet, “A senhora da van”, protagonizada por Meggie Smith no cinema e por Nathália Timberg no teatro brasileiro. Uma octogenária mal-humorada, com um passado misterioso, vive numa camionete em frente a casa de um escritor em Londres. De forma precária e contando com a ajuda alheia, ela reage a todos de maneiras que vão da rabugice à ironia em situações que revelam seu talento para a excentricidade.
Prepotente e com problemas financeiros, ela tem desavenças com o escritor, que, inspirado, passa a retratá-la em uma de suas peças. A van estacionada em frente à casa do escritor desencadeia uma série de situações constrangedoras. A inimizade declarada vai cedendo ao cuidado e a admiração entre os dois personagens. Real e imaginário se fundem numa sequência de fatos cômicos, onde o abandono da senhora da van segue abafado pelo orgulho britânico e por segredos que vão revelando sua vida pregressa.
A hora da estrela
Uma das personagens mais singulares da nossa literatura, Macabéa de “A hora da estrela”, ganha forma no texto de Clarice Lispector pela dúvida do narrador Rodrigo J. M. em apresentá-la ao leitor. A migrante nordestina vai descobrindo como é viver no Rio de Janeiro e jamais reclama de sua condição. Apesar de enganada e tripudiada por vários personagens, busca entender a vida, numa espécie de alienação e sonho, conseguindo livrar-se do abandono.
“Porque, por pior que fosse sua situação, não queria ser privada de si, ela queria ser ela mesma. Achava que cairia em grave castigo e até risco de morrer se tivesse gosto. Então defendia-se da morte por intermédio de um viver de menos, gastando pouco de sua vida para essa não acabar.” (p. 32)
Ao contrário de Macabéa, somos seres de alguma maneira abandonados, esperando o abraço de alguém. Mesmo os que manifestam algum ódio ao outro, querendo eliminá-lo, no fundo querem apagar o vazio não suportável. Uma das grandes questões da vida é como gerir nossos abandonos e carências, sem mascará-las com alguma prepotência para não criarmos mais camadas de nosso eu. Os projetos são importantes e a presença do outro é fundamental para nos tirar do casulo. E assim seguimos...
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Toda compulsão é repetição e repetir é também uma possibilidade de mudar. Toda repetição carrega essa possibilidade. É triste pensar que João não vai parar de latir porque latir é como ele tem esperança. Obrigada por me apresentar João, fiquei muito tocada.