Cecília Meireles, em “Romanceiro da Inconfidência”, define a liberdade como:
“Uma palavra, que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique, e não há ninguém que não entenda.”
Acossados pelo mundo do capital, perseguidos por contas e dar conta do pão nosso de cada dia, vamos esquecendo dessa riqueza, a liberdade, um sentimento raro, pouco provado, do qual, quando menos esperamos e calculamos, somos assaltados por ele. Afinal, você sabe o que é liberdade?
Quando desamarro os sapatos e sinto meus pés tocarem o chão, desfruto de alguns instantes dessa mágica sensação de liberdade. .
Com os pés no chão do parque, sinto o cheio da terra...da terra que dá frutos, que é semente, folha, barro, humus. É no jardim que passeio, de onde emanam cheiros de mato, dos mais diversos, há flores e plantas que se alternam na paisagem.
No jardim não há mais barulhos, apenas os passarinhos e as maritacas contando as últimas fofocas. Então, fecho os olhos, ando por entre avencas, heras e cipós. A terra suja meus pés de barro, sinto-me mais próximo da criação. Descalço. As algemas se partem, vem aí ela, a liberdade...
“No jardim, basta existir...e isso requer silêncio” (Gilles Clément)
Já com os pés na areia, sou arrebatado pelo vento e o som das ondas que arrebentam na beira-mar. A cada passo, na seca e quente atmosfera, sinto meus pés afundarem. Daí me jogo no chão poroso, de olho no céu de um azul intenso, cuja força e extensão provocam uma certa cegueira. E desmaio, lentamente. O fim da tarde se pronuncia, crianças brincam ao longe, mexo os dedos dos pés e das mãos, pareço estar vivo e livre.
Depois me levanto, desafio as ondas e vou aos poucos penetrando naquela imensidão azul. O corpo vai cedendo ao repuxo e se deixa levar...só um pouco. O sal entra na pele, nos cabelos. Flutuo sobre o ir e vir da água, ouvidos mergulhados no som que vem das profundezas e, sem amarras, deixou-me em liberdade para depois voltar e pôr os pés no chão, sentindo a areia em que meus pés afundam... descalço.
Em casa, depois da rua, piso no chão frio da pedra do apartamento. A maçã vermelha pisca da fruteira. Resisto. Vou à vitrola, coloco um disco e a agulha passeia, presa pela correia que a faz cumprir o trajeto do LP. Ela presa e eu livre. Então deito-me no chão e viajo por letras que vão do tempo rei até o abacateiro. Um vento entra pela janela.
Quando descalço, percebo que a mente se esvazia imediatamente. Parece um movimento combinado. As forças contra o mundo cessam, o corpo entra em estado de leveza, não há o que controlar. É só deixar. Vazios.
Liberdade tem a ver com não dominar, é a entrega sem necessidade de possuir, controlar, tudo é transitório, vida passageira. Não há produtividade, urgência de performar. Liberdade é um elogio ao que não tem forma, ao que não vem, ao abandono, uma renúncia. É deixar-se, se deixar levar...descalço.
O não saber é o lugar da pulsão de vida, a ignorância, em tempos tagarelas como os nossos, uma dádiva. Como afirma Byung-Chul Han, em “Vita contemplativa ou sobre a inatividade”:
“O não saber, como uma forma de inatividade, aviva a vida.”
No filme “Aventuras de uma francesa na Coreia do Sul, do diretor Hong Sang-Soo, acompanhamos um dia da personagem título, vivida pela espetacular Isabelle Hupert. Naquele país tão preocupado com resultados, metas e crescimento, enquanto a angústia toma os corpo de alguns personagens locais, a francesa passeia amistosa pela cidade e seus parques. Dá aulas com método próprio, visitando e interagindo com os nativos. Entre uma conversação e outra, um cigarro, natureza, árvores. Dorme sobre pedras, lê inscrições de poetas rebeldes mortos e molha os pés nos riachos, descalça...
Os vazios com os quais não sabemos lidar nada mais são do que a liberdade de que temos medo de nomear...
Soltar as amarras, liberar o controle, andar com os pés no chão...
Descalços.
Este texto foi imaginado e criado por uma pessoa de carne, osso e cérebro, a partir de observações do cotidiano
Olá! Escrevo crônicas sobre vida contemplativa, livros, filmes e novas configurações cotidianas em um percurso diferente nesses tempos de correria e exaustão. Sou um sobrevivente do burnout. Comente e assine minha newsletter, por enquanto sem custos.
legal - bom de ler - pisar no chão, descalço
Lindo texto, andar descalça tb muda completamente meu estado de espírito... <3