Anne Bancroft é Helene Hanff em “84 Charing Cross”
Junior Bueno declarou sua afeição ao filme Medianeiras e à cidade de Buenos Aires, num belo texto aqui do substack chamado “O amor na cidade da fúria”. Nele, destaca a forma como essa película o arrebatou, similar ao impacto que as ruas da capital argentina. Com frequência, revê a película, descobre novos ângulos e detalhes de cada cena, visita locações onde a história se passou. De alguma forma, sonha encontrar com os personagens principais, Martin (Javier Drolas) e Mariana (Pilar López de Ayala).
Há uma bonita nostalgia no texto de Júnior sobre um tempo que não existe mais, sequer existiu, se não na imaginação. É assim que acontece com as coisas que amamos. Voltamos sempre a elas romanticamente, em princípio pela memória, para depois concretizá-las e projetá-las em filmes e livros. Parece que fazem parte da gente e dizem um pouco do que somos.
O filme argentino tem um estranho subtítulo traduzido para o português: “Buenos Aires da era do amor digital”. Todas as tecnologias presentes ao seu enredo hoje estão ultrapassadas, mas o filme permanece com seu charme irresistível e sua história de desencontro do amor universal, como aponta o Junior (visite a página dele para conhecer outros textos interessantes).
“Medianeiras” é um pouco “84 Charing Cross”, meu filme afeto, de 1987, dirigido por David Jones, e que no Brasil recebeu o estranho título de “Nunca te vi, sempre te amei”. É baseado nas memórias da escritora Helene Hanff (Anne Bancroft), a partir das correspondências trocadas com um livreiro londrino, Frank Doel (Anthony Hopkins), durante a segunda metade do século XX, cujo expoente das tecnologias eram as cartas, os correios e, é claro, o livro.
O título “84 Charing Cross” é uma referência ao endereço da livraria onde Frank trabalhou toda uma vida. Um detalhe: Helene e Frank nunca se encontraram porque os tempos de cada um não permitiram. As passagens aéreas até Londres eram caras. Frank era casado com uma irlandesa. Helene nunca se casou, a não ser com os livros e a escrita. O amor indicado na tradução em língua portuguesa é um exagero romântico do tradutor que está do outro lado da tela ou da página.
Há entre os dois personagens uma admiração e algumas questões culturais mal resolvidas que se tornam divertidas. Ela tem adoração por escritores britânicos, mesmo morando em Nova Iorque e manifestando uma curiosidade efervescente sobre tudo que envolve o contexto inglês. Já ele é mais introvertido, preferindo descrever nas correspondências o crescimento das filhas, o som pesado dos Beatles e a gratidão de sua mulher, Nora, pelos alimentos enviados pela escritora. O tempo é o do pós segunda guerra e a Inglaterra passa por uma grande recessão econômica.
Tenho uma cópia em DVD de “84 Charing Cross” e já voltei ao filme muitas vezes. Reli o livro que Helene Hanff escreveu, base para o roteiro do filme, umas outras tantas. Revejo cenas, tenho alguns diálogos decorados e até visitei o endereço da livraria, em Londres, em 1996, quando ela já não existia mais. Ainda há uma placa lá em referência a Marks & CO, os donos da loja. O prédio hoje é alugado para uma rede de fast-food.
A cena que abre o filme é tão bela quanto a que encerra. Ela representa uma espécie de perda de algo que nunca ocorreu, um ghosting contemporâneo. Helene finalmente chega a Londres e fica radiante com os monumentos, praças, o sotaque do povo, as ruas, que sempre foram descritas com tanto cuidado por Frank. A interpretação de Anne Bancroft é perfeita, impossível dissociar sua imagem real de Helene que podemos pesquisar graças à internet.
A verdadeira Helene Hanff
Seu pequeno apartamento em Nova Iorque lembra muito os de “Medianeiras”. Um quarto e sala aconchegante, repleto de livros, uma máquina de escrever, cujo barulho escuto até hoje nos momentos de silêncio em que a memória me permite viajar por esse filme atemporal.
O testemunho do que aconteceu está nas cartas publicadas e no filme. Sem telefones, sem redes sociais, nenhum contato físico. Foi uma amizade impressa em letras, uma sintonia interoceânica e o amor pelos livros que uniram os dois. Ele faleceu em 1968 e ela em 1997.
A história desse encontro que nunca aconteceu permanece. Inexplicavelmente, retorno sempre a ela. Sonho constantemente em voltar a Londres, passear por aquelas calçadas sujas, testemunhar a imponência da paisagem de catedrais e parques, dar um chego lá na 84 Charing Cross, tomar um café na Trafalgar Square. Tudo está lá, mesmo não existindo mais. Só na memória. Assim somos também nós.
1960
2025
Este texto foi imaginado e criado por uma pessoa de carne, osso e cérebro, a partir de observações do cotidiano
Olá! Escrevo crônicas sobre vida contemplativa, livros, filmes e novas configurações cotidianas em um percurso diferente nesses tempos de correria e exaustão. Sou um sobrevivente do burnout. Comente e assine minha newsletter, por enquanto sem custos.
Vou dar uma passadinha lá neste final de semana e ver se a placa ainda está por lá. Se estiver, tiro uma foto para voce!
Não conhecia a história, nem o filme. É engraçado como criamos algumas referências afetivas com filmes e livros, né? Nunca tive o hábito de rever filmes, com raras exceções. Não sei por qual motivo, revi Náufrago, Amelie Poulain e Interestelar, até onde me lembro. Vou pensar sobre isso 😅 Um abraço