Falar sobre a morte e a finitude ainda é tabu em nossa sociedade. Num contexto em que se exalta a juventude, refletir sobre o fim é espinhoso, tema do qual as pessoas se furtam, muitas vezes por questões religiosas, medo, apego. Compreensível, já que despedidas são dolorosas. Lutos antecipados são experiências que não queremos viver, mas inevitáveis.
Esta semana, o tema da eutanásia chegou até nós através de duas notícias: a morte do filósofo e poeta Antonio Cicero; e o novo filme de Pedro Almodóvar, “O quarto ao lado”.
“As coisas não precisam de você, quem disse que eu tinha que precisar”
Os versos de “Virgem”, composição de Cicero com a irmã Marina Lima, celebram o desapego em meio a “outros olhos e armadilhas”. Cicero nos deixou essa semana e soubemos as condições de sua partida pela carta de despedida deixada aos amigos e à família. Tal fato gerou discussões diversas sobre o assunto.
A morte me assusta. Já joguei dados com ela algumas vezes. Decidir morrer é um sentimento carregado de ambiguidades. Pelos avanços da medicina, estamos vivendo mais, o que não significa viver bem. Muitos diagnósticos são fatais e terríveis. O que fazer? Pular etapas? Adiantar o inevitável?
Lembro do ator Robim Williams, diagnosticado com “corpus de Levy”, uma demência das mais severas. Ele optou pelo suicídio quando soube do prognóstico, pois o que se seguiria seria insuportável: atrofia corporal, falência cognitiva e dependência completa das principais funções vitais.
No livro “A morte é um dia que vale a pena viver”, a médica Ana Paula Quintana Arantes fala sobre a importância de nos prepararmos para a velhice e explica como os cuidados paliativos podem amenizar as dores. Creio que cada experiência com a finitude é única. A gente até se prepara, reflete, porém diante do momento derradeiro ou do diagnóstico fatal há o susto, o luto antecipado e as escolhas nem sempre possíveis.
O sonho de morrer dormindo é uma fantasia recorrente. Porém, antecipar o que não tem retorno em prol de uma dignidade desencadeia ainda opiniões controversas em nossa cultura. Num país cujo fanatismo religioso é ascendente, a questão fica ainda mais complexa e o diálogo sobre o assunto impraticável. Os julgamentos têm vereditos austeros, para não dizer dogmáticos.
Antonio Cicero nos deixa poemas belos e letras de canções eternizados.
O quarto ao lado
O novo filme de Pedro Almodóvar, “O quarto ao lado”, baseado no livro “O que você está enfrentando”, de Sigrid Nunez, também traz o tema da eutanásia. No enredo, uma escritora chamada Ingrid (Julianne Moore) é sondada por uma amiga, Martha (Tilda Swinton), para um ritual de despedida pelas vias da eutanásia clandestina, pois está convalescendo de uma doença incurável e dolorosa.
As duas se hospedam em uma casa belíssima em meio a natureza, longe da cidade grande, onde Martha pensa em tomar o comprimido fatal e relembra histórias e fatos de sua vida. Ela não tem uma boa relação com a filha, já que optou por uma vida dedicada ao trabalho como correspondente de guerra. Ingrid acolhe Martha, a escuta e consola, enquanto o espectador se pergunta: terá ela coragem de levar sua decisão até o fim?
O filme traz a marca característica de Almodóvar em que o clima de mistério, o trágico e o cômico predominam. As cores exuberantes dos cenários estão presentes, assim como os cortes abruptos. O tema é conduzido de maneira sensível e poética. A neve é um recurso melancólico, reforçada pelo intertexto com “Os mortos”, de James Joyce. Ao contrário de outros filmes do diretor, não há reviravoltas. Ele opta por um mosaico de situações que celebram a amizade.
Almodóvar é um grande contador de histórias e o filme é mais uma homenagem a essa arte que nos mantém vivos, enquanto isso seja possível. O cinema, a literatura, a oralidade amenizam as dores costumeiras, enquanto nos distraímos com as histórias alheias que são também as nossas.
A finitude é a nossa única certeza. A supremacia do homem diante da vida é um engano, pois temos pouco controle sobre os fatos. Morremos um pouquinho a cada dia. Amamos a vida ora com intensidade, ora com tristezas e lutos. A morte nos torna um pouco mais humildes, menos eufóricos, mais fraternos, quando temos menos certezas e mais dúvidas.
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Adoro Almodovar. Vou assistir o novo filme dele na semana que vem. A eutanasia é algo em que eu penso o tempo todo, por causa de meus pais terem demencia.